Pássaro Unitário

Pássaro Unitário

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Aquarela

À Montenegro Barros


A tinta soluça suavemente na tela
Teu pincel escarra todos os gemidos do mundo
No passeio o fim acena sorridente
No quarto a expressão abandonada do silêncio
Pintar é corta-se para se ter um lamento

Por trás das telas uma ninfa de pernas abertas
Cabelos soltos ao desalinho do tempo
Olhos cansados de tantos alcalóides

Tua pintura traz a sombra com flores coloridas nos (braços
E é o fiel abrigo do solitário
E é o doce vinho dos angustiados

Nos subúrbios de teu riscado vem um afago à Van Gogh
Pinta-se a cara e os trejeitos da morte
Pinta-se o sexo e o hálito de uma vadia na esquina

Gargalhando como um animal em êxtase supremo
Bebem-se todas as taças de cores multicores
E desenha no sonho o curativo das fraturas
Como um pierrô sem casa
Pintado feliz a aquarela da vida que lhe resta.


(Poema do livro Flor de Metal - 2001)

sábado, 28 de janeiro de 2012

Essa tal felicidade


Deitar sob o fim de tarde coberto pelas cores de fogo do arrebol. O pensamento plana na pouca força de um vento preguiçoso. Crianças correndo ao lado de todo o tempo do mundo. Tento entender o desenho cego das nuvens enquanto sinto o tocar de mão silencioso da pequena de todos os dias. A felicidade é simples como um poema de verso único. Tem cheiro de terra molhada e quase sempre visita os nossos dias quando não estamos olhando.


Mário Quintana em sua sabedoria de poeta existencialista, alerta para o velhinho triste que teimamos em cultivar, quando compõe: Quantas vezes a gente, em busca da ventura, procede tal e qual o avozinho infeliz: Em vão, por toda parte, os óculos procura tendo-os na ponta do nariz! 

A humanidade é movida pela composição de uma felicidade, que, muitas vezes, habita o cume de uma montanha íngreme e quase inabitável aos apelos incansáveis da maioria. Essa sensação que amplia os sentidos numa harmonia quase divina é caçada a ferro e fogo nos cantos e recantos do planeta. As mãos tateiam na escuridão e são feridas comumente no aço pontiagudo das ilusões maximizadas da matéria.

A felicidade é etérea. Assim sendo, navega num plano superior ao desgaste do que é palpável. Caminha próxima e intrínseca a essa essência vital que dar luz ao corpo. É o prazer de encontrar beleza na profundeza do alcançável. É a linha de uma pipa empinada e partida sentido o sabor inexorável de tocar o chão outra vez.

Epicuro, o Filósofo do Jardim, na sua Carta a Meneceu orienta que o encontro da felicidade tão próxima, só pode ser alcançado cultivando a virtude. Uma se encontra intimamente ligada à outra. A primeira não existe sem a presença da segunda. Vai mais além quando confirma que todo bem supremo para o ser feliz está nas coisas simples e fáceis de obter e que o homem que vive entre bens imortais não pode se assemelhar a um mortal.

Esse encontro profético do EU com essa divindade criptografada da vida feliz tem um mapa legível orientando seu palácio, porém não tão fácil de ser trilhado. A filosofia produz espaço e luz refletindo o campo de flores ornamentadas pela felicidade, que nada mais é que a negação dos desejos frívolos e artificiais do mundo de glórias vãs que adormece o homem na letargia perfeita do encontro ao nada.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Navio Fantasma

Escuridão esvoaçante
Ébria em todos os ópios do salão
A marcha dos acordes evoca a loucura
Que surge lúcida e estonteante
Abrigando a dor desolada dos fantasmas
O convés se faz imundo de prazer
A loucura canta

Hora em cada olhar
Hora em todo olhar

Se mostra profana em desejos
E veste-se de uma nudez incomparável
A escuridão estampa nas paredes hologramas de estovaína

(Todo embriagado se faz um deus)

Lá fora
Uma pequena ninfa jaz sobre o asfalto
Voando ainda embriagada
(Sem mais dores)
Rumo aos salões flutuantes
Muito além do azul.


(Poema do livro Paramnésia - 1998).

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Perdão, Santa Adolescência


O adulto é um tolo. Não um estúpido por simplesmente ser adulto, mas por aceitar vestir a indumentária que o sistema produz para o ser adulto. Renato Russo em uma das suas canções declara que aprendeu o que era certo com a pessoa errada. O Ira! (Banda de rock paulista) cantarola: Vivendo e não aprendendo. O Titãs vai além: Não acredito em ninguém com mais de trinta, não acredito em ninguém com trinta e dois dentes.

Os versos refletem sobre o princípio do distanciamento da adolescência, que vai moldando o homem dentro de uma carapuça abstrata, que trucida virtudes e constrói vícios. Por vezes somos a própria negação das mais belas ideologias que um dia defendemos. Pegamos-nos realizando o contrário da revolução iniciada nos dizeres radicais das camisetas que uma noite usamos. Partimos sem nos dar conta trilhando a ilusão que embrutece o homem e diviniza em preces pagãs a matéria.

Nesses dias me peguei absorto comigo mesmo. Peguei-me letárgico diante do tráfico das vitrines imóveis, que penetram a lança-perfume a razão desprotegida de cada um. Fui conduzido à tolice dos crédulos no sistema. Dos crentes na imagem desenhada impressa em tecido comum. Sentei-me a mesa da alucinação e bebi a desconstrução de mim mesmo. O transe foi momentâneo. Logo me veio à mente uma frase de Thomas More impressa nas páginas do volume Utopia, que eu conduzia no bolso do jeans desbotado pelos corredores da faculdade de jornalismo: “Admira-se saber que existe gente tão insensata que se considera como que enobrecida por vestir um traje de lã fina”.

Santa Adolescência! Nas fotografias dos ensaios ensurdecedores de rock. No dedilhado calejado de acorde por acorde namorando o violão. Nos pequenos palcos e saraus declamando versos de poemas tortos traçados a mão livre. Nas bravas camisetas que gritam: Rock Anti-Marcas! Pintadas artesanalmente pelo companheiro Carlile. Na liberdade de poder viver o “eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus!”, Na impressão questionadora de tudo que é estabelecido, normatizado, absoluto. Nas folhas dos livros de filosofia regando um pensamento autêntico escrito a mão em noites sem lua. Na vivencia da amizade que Cícero afirmou ser o maior de todos os bens humanos. 

Perdão, Santa Adolescência! O poeta menor de versos frágeis continua aqui. Com seus livros amarelados na estante. Com seus discos de rock arranhando a vitrola. Com os amigos que nunca foram. Com a retina afiada e a opinião livre. Com o tempo que não leva embora a força, a dor e a beleza de ser o que é. Com o alcalóide necessário ao espanto da alucinação que nos rodeia. E com a certeza clara que o mundo que construíram lá fora não serve pra nada.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

É tudo pose!


Vem o ano novo de portas e janelas abertas. Tiro o pó das botas enlameadas nos passos já trilhados. Sinto o perfume do sol que adentra sorrateiro pela vidraça acomodando-se sem cerimônia no tapete da sala. A vida sempre pode ser diferente do que um dia foi. O espelho mastiga meu semblante desenhando novos traços. Essa pausa que damos entre um ano e outro fere a materialidade do que teimamos em acreditar. Tantos caminhos trocados, tantas portas arrebentadas sem necessidade, tantos dias gastos com a ilusão de um mundo em pura pose.

Por essas horas todas as listas lotadas de desejos devem estar prontas. Rotas demarcadas a giz de cor por mãos trêmulas de necessidades. O mundo não muda. O mundo é a projeção que fazemos dele mesmo dentro do mundo inventado delineado dentro de cada um. Os projetos estão elaborados e intercalados no armário do sistema. Os planos não são nossos, são do espelho de mundo onde o aparelho social dita às ordens as quais obedecemos religiosamente como nossas.

Todo início de ano novo vem à velha máxima da felicidade, da paz, da saúde, do dinheiro... A canção pede o mesmo refrão cantado em voz única nos 360 graus do planeta. A fome de todos sacia a todos na frustração de deuses distantes, míticos e personificados em embalagens pré-fabricadas de tudo que nunca foi, mas é. A maior das angústias permanece sendo a corrida em busca da luz, seguindo o rastro descompassado da escuridão. Epicuro continua com a razão: O desejo é a causa de todos os males.

Talvez seja mais cômodo adiar a beleza. Prorrogar o silêncio. Dilatar a estrada do alcance a si em favor do imediato beijo do lupanar das alucinações modernas de um mundo caduco. 2012 acordou sorrindo inocentemente sem compromisso e foi pisoteado na porta da frente pela miséria nossa de cada dia. Cheia do egoísmo. Inundada de mínimos planetas batendo uns nos outros como cegos, que nem toda a luz do universo chega a clarear suas incertas certezas. E depois de tudo Dylan (Bob) há tempos alertou: A verdade do mundo vem de uma grande mentira. É tudo pose!