Pássaro Unitário

Pássaro Unitário

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Adeus, Ano Velho

A arma carregada acomodada no tapete da sala.
A munição com sabor de cicuta nos lábios gelados.
Todo fim é serenado de valsas de adeus.
Todo fim mastiga chicletes embebidos no álcool do que se vai.

O Ano Velho traga da sacada o cânhamo das angústias que viveu,
Rega a papoula alva que banha de pó seu olfato,
Contempla da janela do seu último andar o tempo que fugiu sem avisar.

Na vitrola o retalho da canção de despedida.
Na fotografia o sorriso congelado da chegada em noite de festa.
No horizonte a sombra nua e deslumbrante do fenecer.

A solidão é a mais doce companheira do fim.
A solidão é a sobra iluminada de todo náufrago.

O Ano Velho veste seu blusão desbotado de alegorias,
Tranca todas as janelas do mundo,
Deita em silêncio no berço de todas as escuridões.

A mão trêmula ainda toca o sepultamento dos dias alinhados em sequencia,
As noites bebidas de cinza e as estrelas deitadas numa mesma cama.
Tudo foi, não importa, fecha a porta.

Adeus, Ano Velho.
Ano Velho a deus.
Adeus amigo, para jamais.
E que leve lhe seja todos os disparos no crânio último do seu fim. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Eu e meu tênis



Saio correndo. Eu, meu tênis e a solidão que não deixa de passear acompanhada. Foram 21km seguidos de meia maratona. Passada após passada, deslizando e arranhando o asfalto da rota, que dizem que vai dar no sol. Um roquezinho zumbia no fone beijando levemente a audição. Melodiando a senda sonora de um percurso molhado em fôlego e suor, que delinearam as quase duas horas de marcha ininterrupta.

A sensação da estrada sem fim. O sabor do corpo rompendo a dissonância do vento. A viagem dentro de si, vasculhando os cantos e recantos do próprio ser. O cheiro sombreado da força, enamorando o descanso do outro lado da linha. As mãos e os sorrisos de ninguém, acenando a esperar no cume da missão cumprida. Cada quilômetro pestanejava seu alento de satisfação imaterial. Cada rosto estranho na avenida, que se alongava serpenteando à tarde, lembrava mais um poema concreto, com seu alicerce rochoso e sua imagem poética refletida no cântico plural de tantos tênis.

Correr é um diálogo intimista com a solidão. Essa dama atlética que ensina no sustenido de suas saias cinza a beleza serena do encontro apaixonado do mesmo um. Correr é falar de si consigo mesmo. É admirar o que passou com toda a satisfação do mundo. É buscar nos calabouços mais profundos a resistência necessária para tocar o lume no horizonte da distância. É superar você, olhando para você mesmo antes do globo que gira ao seu redor. É encontrar os trejeitos da felicidade no percorrer do seu próprio mapa.

O cheiro da maresia que vinha da proximidade do mar infiltrava os pulmões marciais que sopravam com furor todas as velas. Sorriso na janela dos dentes cheio de gotas de transpiração meio que prateado pela lua que apontava na chegada. Músculos, ossos, coração, vontade... Uma orquestra flutuando sua harmonia composta do sabor da estrada deixada pelo caminho. Vai o solitário alcançando correndo sua fonte e bebe a noite comovido de si no meio da multidão indiferente.

Eu e meu tênis. Companheiros da mesma trajetória. Iluminados da mesma lua. Satisfeitos um pelo outro. Gargalhando o charme da solidão. Assoviando os versos em compasso da canção que ainda tocava no mp3: “A trilha sonora da vida que trilho eu trago e assopro no ar...”.

sábado, 27 de agosto de 2011

Nossa ilha de Manhattan


O lado escuro da cidade se manifesta na triste lâmina da violência. O consumismo abre espaço para a degeneração progressiva do homem moderno. A dor do não poder ter, do não poder consumir é mais cruel que as próprias enfermidades que habitam o corpo humano. O ácido lisérgico capitalista prega a ferro e fogo a lei soberana do possuir, para após, incidir os holofotes do absoleto, mostrando que a busca do ter é infinita, igual o deslizar da areia de uma ampulheta revertida a todo instante.

O sistema prega assiduamente nos corações e mentes tão esmolambados de cada um de nós sua santificada ladainha do “ter para ser”. A ferrugem corrói milimetricamente as entranhas da ética, que desaba em pedaços apalpadas pelos tentáculos de uma sociedade moldada, dia após dia, de atributos desumanos. É a banalização da decadência humana a sapatear com sapatilhas de mais bela bailarina diante de olhos dopados e incapazes de tecer qualquer questionamento.

A política econômica do capital é inserida e amparada a todo vapor na escala industrial. O ato do consumo desenfreado é a mola que impulsiona o sistema produtor do desequilíbrio social a que estamos inseridos. A astúcia empregada ao longo de décadas assombra a cultura e impõe respeito ao legado diluído do que vem em flashes na moda planejada em gabinetes.

A sensação febril imputada no subconsciente do homem, desde sua mais tenra idade, é responsável pela maioria das dores sociais que nos deparamos. A produção da beleza, da força, do sucesso, da amizade, da aceitação social passa sempre no que se encontra exposto nas vitrines. Tudo é vendável. Tudo é vendível. E tudo deve ser feito, realizado e sacrificado para alcançar o inalcançável.

O poeta francês Arthur Rimbaud, considerado pelos anarquistas como o Poeta da Revolução, apresenta em um dos seus versos a contestação sábia que poetiza o semblante e o encontro melancólico final do homem “ter” com o homem “ser”: “Por educação, perdi minha vida”. Cada letra do verso aponta o desespero carregado de uma vida voltada à adaptação imposta pelo aparelhamento de aceitação social, que escurece o indivíduo enquanto ser social único.

A falência, camarada leitor, é a lamparina dos nossos anseios virtuosos que se estafa progressivamente em nossas convicções, por imaginarmos, erroneamente por todo o passeio, que precisamos “adiar para o outro século a felicidade coletiva, e aceitar: A chuva, a guerra, o desemprego, e a injusta distribuição porque não podemos, sozinhos, dinamitarmos a ilha de Manhattan”, como confidenciou o bardo Carlos Drummond de Andrade em sua Elegia 1938.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Companheiro Rock'n'Roll



Meu verso se perfumou de naftalina, sentou a mesa do bar, afinou sua guitarra de vocábulos, pediu uma dose de gasolina e colheu da lua o uivo indigesto dos lobos. Sussurrou uma ode veloz, melódica, distorcida em acordes dissonantes, reverenciando o companheiro ébrio de codinome Rock'n'Roll. As estrelas abandonaram o firmamento, a constelação desceu ao chão, o manto negro da noite cobriu o tablado do anfiteatro e a voz rouca uníssono esbravejava sua partitura marcial de três acordes libertários.

O Rock'n'Roll é o compasso elétrico atribulado do menino cabeludo de ideias, contestando as sombras de um sistema que padroniza corações e mentes. Seu verbo embalado ou balado alivia as destoantes frustrações do viver incompreendido. Sua ordem gera desordem. Sua organização desorganiza. Seu aparelhamento desaparelha. Seu refrão destoa categoricamente da ignorância atroz, que indica o caminho certo, a hora sensata, o modelito exato, o ritmo harmônico de uma vida enlatada.

A melodia roqueira também é flor roubada à meia-noite do canteiro orvalhado de amores e solidão. Passeia no acalanto conformando a dor no andarilho som musical do mundo de inquietações mútuas. Saboreia os lamentos. Afaga as decepções. Auxilia o grito rasgado da indignação. Acaricia a paixão subtraída em cada um de nós. E é batom nos lábios doces da ninfa menina. E é sol esclarecendo elementos de sobrevivência no caos. 

Da vitrola vem a tempestade das vidas na poesia exacerbada da crônica roqueira. A bateria acelera. O baixo ensurdece. A guitarra solidificando. A voz entoando sílabas metamorfoseadas de palavras, que acendem versos oriundos das profundezas de cada EU. Luzes em contra-fluxo. Trovões relaxando a audição dos deuses. Meninos e meninas. A filosofia jovem do moleque companheiro dos mil e um lirismos de libertação.

Meu verso geado de flores e cabelos coloridos beija silenciosamente a mão nebulosa de todas as nebulosas. Entoando estribilhos de sua nave planetária de canções. Aumentando o volume e assoviando enluarado de braços e abraços a harmonia fantasmagórica da longa amizade com o bom e velho Rock'n'Roll. “I can’t get no, satisfaction...”.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

O horizonte na caverna


Mais uma dose. Vitrola acionada. Vento frio rasante assoviando da janela. Acredito na música. Na poesia que desperta, impulsiona e gera revolução. Não acredito em governos, que desgovernam os sonhos e emudecem os tambores do coração. Toda rota navega na rotatória ilusão de um encontro. A juventude não tem espelho e o abraço inflamatório da anti-cultura é o oxigênio que constrói o nada social em que nos habituamos a conviver diariamente.

Aprendi há algum tempo que o mundo tal qual visualizamos não passa de um conceito. É uma película de ficção onde fantasmas assustam e são assustados. É o homem entorpecido ausente da própria realidade. Toda a vida desvivida é composta de sobrevidas, alimentadas a conta gotas pelo sistema que doutrina o sonho de felicidade nas vitrines. Somos o que não somos, iludidos na milimétrica ilusão dos que acham que somos. Andamos nos passos descompassados de um modelo social egocêntrico, estranho, caduco e cheio de ampolas viciadas de desilusão. Toda angústia explode da reação alérgica da mentira, que nos acostumamos a buscar como a fonte luminosa de todos os desejos.

O homem moderno é o reflexo de suas necessidades. Este bicho sedutor que acorrenta as asas de cada pássaro, o mantendo num longamente distante da liberdade. O necessário de hoje é produzido nos laboratórios de anfetaminas, onde a sociedade subjugada se encontra submersa. É o tempo da ampulheta dos desejos revertida a todo instante. É o tempo da felicidade pré-fabricada, artificial e indigesta ao amanhecer. Somos a condução cega do trem bala a mil por hora, devorando antroporfagicamente nosso presente por um futuro desmaterializado de certezas. A mão danosa do consumo a apedrejar frágeis vidas. O soneto cruel dos governos e suas honrarias de ordem em desordem.

Já disse, não acredito em governos. Não acredito no sistema. Não acredito nos poderes. Em todos os lados só consigo vislumbrar a ameaçadora, profunda e escura caverna. Aquela que Platão um dia condenou por disseminar a ignorância e assassinar cruelmente a filosofia.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O inferno de Deus

Vou estender o dia na janela. Ver se o sol laranja da manhã dilui as nódoas e o mofo acinzentado da maldade humana. Analisar o homem é inalar doses cavalares de egoísmo, vaidade e vícios a mil. Não se pode visualizar a tela da humanidade sem experimentar longos momentos de horror. Admirar frente a frente o bicho homem é saborear os lábios monstruosos das mais apuradas espécies de peçonhas. A chaga apodrecida em dor é regada solenemente no jardim do olhar humano. Manuel Bandeira no poema Presepe já alardeava: “O homem – essa absurda imagem de Deus!”.

 A humanidade aprendeu a traduzir em seus neurônios um mundo falseado, que tortura a verdade e sopra aos olhos universais a discrepância do homem como ser divino. É a divina trágica comédia dos ogros no céu de querubins. É o espelho amaldiçoado refletindo a feiticeira moribunda de todos os vícios, contente por ser a mais bela. Todo o mal se encontra encarcerado e semeado nas vísceras do próprio homem. Ele é a causa e o efeito catatônico dessa odisséia planetária de ópio e ranger de dentes. Sua mão maquineista flexiona o cão, visualiza a alça de mira, esmaga o gatilho e saboreia a pólvora na carne da presa que arqueja.

A criação mitológica do inimigo etéreo, vermelho e com semblante diabólico é mais uma falaciosa concepção de que o mal não emana da longínqua terra humana. O sopro do fogo urge do pulmão endiabrado do homem. A geleira polar da indiferença navega em mares abastecidos a pleno vapor pelo bicho homem. Esse ser animado das piores tendências. Esse ser criador de razões que saciam seu desejo vil. Esse ser emaranhado da discórdia que destrói meticulosamente o próprio semelhante.

O homem nega a contemplação única do si mesmo. Nega a reforma na sua catedral austera de desespero e de egoísmo sem fim. Sua profunda escuridão é apresentada a todo instante em flashes simultâneos de sombras. A mão que balança o berço constrói o pânico do presente e planeja a ojeriza do futuro. A face humana representa a medusa petrificada, dissimulada e inundada de vapores tóxicos. É a elegância dos mil diabos na passarela. É a túnica da hipocrisia lambendo o chão da mentira. O filosofo alemão Friedrich Nietzsche em um dos seus tratados sabiamente sentencia: “Até Deus tem um inferno: É o seu amor pelos homens”.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

É de lua nova



Overdose de vida na lua nova que se inicia. A estrada peçonhenta dos sonhos frustrados é esquecida na calçada onde um mendigo bêbado vomita. Queremos os astros, a terra, o mar tudo que se compõe longe do que realmente é nosso. O poeta moribundo estava certo quando versificava em tom de desabafo profundo: "Gente nasceu para querer".

As estórias, os percursos se enlaçam e rolam dentro desse tapete vermelho de veludo alucinógeno, que nos conduz buscando sempre o supérfluo sucesso de um mundo fantástico, ilusório e sem chance de felicidade verdadeira. As vidas trêmulas em cada esquina que cruzamos nos dizem a todo instante, em um ruído gritante, que os rumos escaldantes do passo em descompasso de nossa sociedade apontam apenas para o desconforto.

Lua nova, vida nova no mundo de simplicidades. É a chuva cantando ao sabor dos ventos a melodia de um dia perfeito. Sem revoluções, sem disputas, sem quedas, sem o estrago hipocondríaco de uma vida de concorrências, desafetos e vitórias melancólicas completa de um nada eterno. Nossas mãos em contato com a epiderme da verdade. As fadas embriagadas cantando ao som do violino do deus Baco, dizendo em sussurros que viver é sonhar com amizades, amores, aventuras. É sonhar com o que temos a todo instante no nosso jardim de flores simples. É cantar no poema como uma pluma levada pela fluidez do ar: "Eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus".

O mundo exala sabores e desejos caninos, embalados ao som do caos pregado em nossas almas pela fonte violenta dos comerciais na TV. Desejamos em um eco uníssono os mesmo desejos de todos. É a cultura de massa que assombra nossas vidas tirando a corte de foice à criatividade e, principalmente, os atributos para formação de uma nova ideologia, aonde a vida se conduza ao espelho e se lance de encontro à felicidade. 

O viver se encontra distante dos abraços, dos gracejos, dos elogios desse sistema demente que trabalha para transforma o humano em máquina de fazer papel moeda. É o apelo de Drummond (Carlos) que clama em elegia: "Trabalhas sem alegria para um mundo caduco". É a máxima socrática que difunde a verdade do encontro com a felicidade a partir do pressuposto que diz quase em silêncio: "Conhece-te a ti mesmo".

Na verdade nada do que pregam que é preciso verdadeiramente se necessita. Os dias nossos de solidão, de angústia, de desespero matinal são reflexos da insatisfação dos sonhos gerados por uma massa sistemática assídua, que nos convence a persistir no erro de uma vida demente na busca infindável do que não temos. Somente a simplicidade traz a felicidade, a partir do instante que nos damos felizes ao percebemos a grandeza do nosso mundo interior e não temos mais a necessidade absoluta do que o sistema drogado de informações controvertidas nos diz.

O poeta Fernando Pessoa no poema "A Outra" inicia com os versos: "Amamos sempre no que temos o que não temos quando amamos". Numa alusão em carne viva as ações impetradas pelos homens quando somente ao longe está a felicidade verdadeira, que é frustrada a cada conquista desse mesmo longe, como uma ampulheta que trabalha eternamente em busca desesperada do inalcançável.

Lua nova batendo em nossa porta seus sinos de recomeço. É hora de dar um passo para trás. Reler estórias infantis. Buscar o desejo nas vidas que temos, nos móveis calados de nossa sala, nas pálpebras calejadas de quem sempre estar do nosso lado. Buscar o sonho na simplicidade eterna dos momentos, se dar feliz com cada grão soprado para nossas mãos. Ver o dia e a noite com olhos de humanidade. 

É Lua Nova que necessitamos. Violinos inebriando um novo tempo para quem sabe que viver é fluir ao sabor das sensações mais simples. É a voz que clama "é preciso amar". É o verso que alerta "a vida passa, a vida passa e amanhã não seremos mais o que somos hoje".

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Os Acordes do Meu Blues

Quero compor um blues de lamento como os negros americanos nos campos de algodão faziam. Um blues compassado e chorado igual à letra dos tangos derramados em copos descongelados de qualquer bebida. Tocar a vida desvivida do meu leitor, que abraça sutilmente a seda transparente embrumada de batom viciado do que é a vida. Quero lamentar em tom poético o desfolhar dos anos que passam sem razão. Quero enluarar a dor mais vil, que se arrasta aos pés descalços desse mundo. Mostrar que o sonho é a transparência de um estado terno de loucura, onde o querer infindável se depara nas amarras de um nada eterno. Um blues que comente em voz baixa nos seus acordes o desespero acelerado de cada um de nós, e no mesmo tom acalente em refrão de ninar cantarolando: "Viver é se entregar ao acaso".


Mostrarei no sustenido enfileirado desses versos as sombras cômodas de descanso e serenidade. Componho uma ode aos desejos enforcados, aos murmúrios da vida que poderia ter sido e que não foi, aos dias tenebrosos sem sol que passamos, aos medos enferrujados e acorrentados aos nossos calcanhares. Quero cantar um blues de satisfação pela vida que vivemos e amargamos. Quero deixar o leitor igualmente confortável em meio à expressão caricata das bailarinas, que cintilam na aurora e no anoitecer tempestuoso das noites que parecem não acordar no amanhã. Um blues carregado de estórias que se foram, alvejado pelo manto noturno do inexorável, diluído nas mãos de porcelana das frustrações. Um blues que apresente a vida como um cigarro aceso, degustado lentamente na varanda, sem os assombros de risos e choros cotidianos.


Quero compor um blues que fale das desilusões, que acaricie ingratidões, que ame a solidão impregnada no nosso olhar sério. Quero um blues para os derrotados, para os humilhados, para os sem o pão nosso de cada dia. Um blues revolucionário sem o temor de ser esquartejado em praça pública. Quero fluir um blues marginal, mendigo, livre das ampolas viciosas do sistema. Que abrace a velhice, que saboreie as moças velhas esquecidas nas sacadas das janelas. Quero versificar em forma de canção a inutilidade do pensar que somos. Quero mostrar entre cada nota o silêncio do nada, que nos acompanha sorridente. São as mãos calejadas do caminho percorrido seguindo o sol. É o coração entorpecido nas madrugadas sem estrelas a cambalear pelos céus.

Venho comungar nesse blues arrastado das lembranças contidas no sótão do nosso peito, do grito rouco lançado ao vento sem endereço algum, das fotografias amareladas cheias de sorrisos e carinhos que um dia foram. Componho um blues cheio do azul. Azul dos lábios, cabelos, unhas, corpo e mente. Azul das vidas fragmentadas em cada espaço de segundo. Azul histérico das botas de aço da saudade. Quero compor um blues versificado de vida. Desolado, desiludido nas veste mascaradas que trajamos em cada dia. Um blues que faça o leitor satisfeito de se lançar ao desespero. Um blues mais forte ainda, que exponha nitidamente a pequenez do desespero, desenlaçando nossos sentimentos da pseudo-realidade de se estar vivo.

Busco entre partituras, acordes, versos e arranjos, a silhueta de um blues purulento de vida. Que vele o sono da solidão. Que umedeça os percalços da estrada. Que dê a mão às frustrações inconformadas. Que balance o berço nosso de cada dia. Um blues feito do tecido dos solitários. Que dê sentido à vida. Que cante em voz de criança para as estrelas vazias de luz. Quero compor um blues que seja um poema diluindo a febre de sensações condensadas no nosso EU. Que diga em segredo aos ouvidos dos suicidas, desmentindo o poeta, "a vida vale a pena a dor de ser vivida". Quero um blues que me faça dormir sossegado, depois de um dia difícil de trabalho.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Minha terra tinha palmeiras e cantava um sabiá

Não esqueço minha terra. Lá estão meus pais, irmã, sobrinhos... Tomando conta da vida e seguindo o verso trabalhoso de suas estórias. Lembro o que Nova Cruz poderia ter sido e não o é. Lembro das palmeiras verdes que secaram de dor e desamparo. Lembro das ruas, dos caminhos, das praças, que se tornaram sombras desesperadas do descaso doentio da ignorância. Lembro das escolas, das quadras, das luzes, que hoje refletem nitidamente “O Grito”, traçado amargamente na tela do pintor norueguês Edvard Munch.  

Hoje, minha terra olhada de frente mastiga com seus dentes cariados a sola do sapato das promessas do dia que não aconteceu. Caminha mendicante e as quedas, com muletas oxidadas impostas pelos lábios brutos da mentira propagada. Minha terra pede urgência na voz sem força dos desvalidos. Pede emergência no pesadelo enfermo dos sem saúde. Pede socorro no lápis sem tinta do estudante. Clama ajuda na fome nossa de cada dia. 

Minha terra apresenta diariamente ao trono: Sua prece, seu apelo, sua súplica, mas o volume ensurdecedor na mansão dos musgos não abre intervalo para a caridade.

Verdadeiramente na minha terra, o cântico do sabiá anda desentoado pela Amplitude Modulada do maestro decadente. Amarga no descompasso de um coral regente de insuficiência. E se perde nos acordes da orquestra que estraçalha a praça pública com seus instrumentos. Minha terra é maltratada, vilipendiada e usurpada. É molestada, torturada e atormentada. É Nova, para distribuir seu valioso mel. É Cruz, que depois o santo de barro fétido rejeita em um canto qualquer da estrada.

Na minha Nova Cruz não tem mais palmeiras, nem mesmo canta o sabiá. Minha Nova Cruz tem a sede dos futuros anunciados. Tem a fome das promessas esquecidas. Tem a necessidade coletiva. Minha Nova Cruz tem no concreto armado, na liberdade do ar e no pisar firme de suas ruas a força do seu povo, que não deve cantar de novo a canção viciada de indiferença, que marcha fluindo hipnoticamente, nas ondas sonoras do rádio.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Sem Jornalismo Não Há Salvação

 Jornalismo não é genuflexão aos anseios corrompidos de uma parcela burguesa, que deteriora numa lapidação progressiva a sociedade. Jornalismo não é a palavra patrocinada, que conduz a massa hipnótica, burra e robotizada rumo ao clero religioso da desinformação. Jornalismo não é masmorra, corrente enferrujada ou alcalóide sublimar, que vegeta nos cérebros dos homens e mulheres na conduta alheia a sua realidade. Jornalismo é a palavra redigida onde a ação motivadora se completa num flerte avançando a passos largos até o fato. Como ele é. O que ele reflete. O que ele ocasiona. Descortinando as penumbras da ignorância e fornecendo elementos da realidade nua e crua, gerando o cidadão informado, apto a processar sua independência no meio que está inserido.

O jornalismo vai mais além do que o fato da informação propriamente dita. Ele questiona com a voz da coletividade. Ele investiga com os olhos do bem comum. Ele opina balizado na formação de um espaço social correto, independente e igualitário. Jornalismo não é o monstro fabricado nos laboratórios de palavras pagas, servindo a um senhor, que não se chama sociedade.

Jornalismo não é o texto produzido por militantes, que subornaram seus neurônios a um plano egoísta, reacionário e desolador para toda a massa mastigada e cuspida ao acaso, em proveito próprio. Jornalismo passa longe dos gabinetes refrigerados onde fraudadores da comunicação, ditos jornalistas, fabricam suas inverdades, suas retóricas enfermas, seus planos escusos de perpetuação de um projeto pessoal ignóbil.

Jornalismo é mais que profissão. É filosofia. É poesia. É ideologia. Como escreve o professor Clovis Rossi no livro O Que é Jornalismo: "A melhor preparação para a função jornalística será certamente jogada ao lixo se não for acompanhada de rigorosa honestidade no trabalho jornalístico". E completa mais a frente: "O dever fundamental do jornalista não é para com seu empregador, mas para com a sociedade. É para ela que o jornalista escreve".

Jornalismo trata-se de um conjunto de palavras, rabiscos e idéias jogadas ao público, que fecunda um estilo de comunicação esclarecedora, libertadora, e acima de tudo conscientizadora.

Jornalismo caminha longe dos escambos de favores. Passeia indiferentes as cifras alucinógenas de consciências. Mastiga a claque patrocinada pelos adjetivos e verbos do que há de mais atrasado. Jornalismo não necessita de gracejos e elogios de quem não responda por uma comunidade amparada em nobreza e descanso coletivo. Jornalismo é uma contemplação da sociedade, buscando dentro da solidão petrificada das letras o prisma revelador de seu próprio espelho.

Não se pari jornalismo sem princípios e valores éticos. Não se ensina jornalismo com apego a valores materiais. Não se torna jornalista quem não tem coragem, quem não combate o bom combate. Não se é jornalista quem se esquiva da polêmica. Não se faz jornalista quem coloca o status acima do bom desempenho do oficio. E necessariamente, nunca se fará jornalista aquele que não busca através da comunicação a construção de uma sociedade produtora de independência, formação e informação legível.

Artigo publicado originalmente no jornal Correio da Tarde (Natal-RN) no dia 20/10/2006.