Pássaro Unitário

Pássaro Unitário

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Os Acordes do Meu Blues

Quero compor um blues de lamento como os negros americanos nos campos de algodão faziam. Um blues compassado e chorado igual à letra dos tangos derramados em copos descongelados de qualquer bebida. Tocar a vida desvivida do meu leitor, que abraça sutilmente a seda transparente embrumada de batom viciado do que é a vida. Quero lamentar em tom poético o desfolhar dos anos que passam sem razão. Quero enluarar a dor mais vil, que se arrasta aos pés descalços desse mundo. Mostrar que o sonho é a transparência de um estado terno de loucura, onde o querer infindável se depara nas amarras de um nada eterno. Um blues que comente em voz baixa nos seus acordes o desespero acelerado de cada um de nós, e no mesmo tom acalente em refrão de ninar cantarolando: "Viver é se entregar ao acaso".


Mostrarei no sustenido enfileirado desses versos as sombras cômodas de descanso e serenidade. Componho uma ode aos desejos enforcados, aos murmúrios da vida que poderia ter sido e que não foi, aos dias tenebrosos sem sol que passamos, aos medos enferrujados e acorrentados aos nossos calcanhares. Quero cantar um blues de satisfação pela vida que vivemos e amargamos. Quero deixar o leitor igualmente confortável em meio à expressão caricata das bailarinas, que cintilam na aurora e no anoitecer tempestuoso das noites que parecem não acordar no amanhã. Um blues carregado de estórias que se foram, alvejado pelo manto noturno do inexorável, diluído nas mãos de porcelana das frustrações. Um blues que apresente a vida como um cigarro aceso, degustado lentamente na varanda, sem os assombros de risos e choros cotidianos.


Quero compor um blues que fale das desilusões, que acaricie ingratidões, que ame a solidão impregnada no nosso olhar sério. Quero um blues para os derrotados, para os humilhados, para os sem o pão nosso de cada dia. Um blues revolucionário sem o temor de ser esquartejado em praça pública. Quero fluir um blues marginal, mendigo, livre das ampolas viciosas do sistema. Que abrace a velhice, que saboreie as moças velhas esquecidas nas sacadas das janelas. Quero versificar em forma de canção a inutilidade do pensar que somos. Quero mostrar entre cada nota o silêncio do nada, que nos acompanha sorridente. São as mãos calejadas do caminho percorrido seguindo o sol. É o coração entorpecido nas madrugadas sem estrelas a cambalear pelos céus.

Venho comungar nesse blues arrastado das lembranças contidas no sótão do nosso peito, do grito rouco lançado ao vento sem endereço algum, das fotografias amareladas cheias de sorrisos e carinhos que um dia foram. Componho um blues cheio do azul. Azul dos lábios, cabelos, unhas, corpo e mente. Azul das vidas fragmentadas em cada espaço de segundo. Azul histérico das botas de aço da saudade. Quero compor um blues versificado de vida. Desolado, desiludido nas veste mascaradas que trajamos em cada dia. Um blues que faça o leitor satisfeito de se lançar ao desespero. Um blues mais forte ainda, que exponha nitidamente a pequenez do desespero, desenlaçando nossos sentimentos da pseudo-realidade de se estar vivo.

Busco entre partituras, acordes, versos e arranjos, a silhueta de um blues purulento de vida. Que vele o sono da solidão. Que umedeça os percalços da estrada. Que dê a mão às frustrações inconformadas. Que balance o berço nosso de cada dia. Um blues feito do tecido dos solitários. Que dê sentido à vida. Que cante em voz de criança para as estrelas vazias de luz. Quero compor um blues que seja um poema diluindo a febre de sensações condensadas no nosso EU. Que diga em segredo aos ouvidos dos suicidas, desmentindo o poeta, "a vida vale a pena a dor de ser vivida". Quero um blues que me faça dormir sossegado, depois de um dia difícil de trabalho.

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