Pássaro Unitário

Pássaro Unitário

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Homem de bem


Mas tu olhas para o céu
e antes que ele desabe tu gritas.
Imploras proteção para o mal que em ti abrigas.
Pedes paz em teu lar
e arma de violência tuas palavras além da porta.

Queres sombra, sossego e descanso.
Pedes um sol bonito e brilhante no teu quintal
mas antes de tudo envias falas de intolerância e tempestade em teus sinais de vida.

Ninas o teu pequeno filho que dorme protegido
e entre lençóis perfumados que embriagam o quarto de dormir
contaminas o sono dos já sem sono
com teus trovões violentos de ignorância e indiferença.

Pedes justiça, mas não és justo.
Pedes amor, mas não sabes amar.
Pedes ética e não suportas o peso mínimo da coerência.
Pedes vida, mas desejas a morte ao que a teus olhos não parece espelho.

Clamas a Deus.
Rogas a Cristo.
Buscas Buda, Maomé, forças sublimes da natureza espiritual.

Mas nem Deus nem Cristo,
Nem Buda nem Maomé,
Nem as forças sublimes da natureza espiritual
encontram morada no calabouço lodoso
o qual ousas chamar “homem de bem”.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Notas de uma gaita



Meus poemas são ternos manchados de tinta fresca.
Tenho o desejo vago de ir embora e uma vontade ébria de ficar.
Minha oração não sabe falar com Deus
E quando acordo pela manhã
esqueço a noite como beijo em lábios de paixão passageira.

Não sei nada da vida.
Não sei nada da morte.
E não saber é um estado divino de pureza.

Canto porque me sinto triste
e meu canto triste afaga os sorrisos que guardo dentro de mim.

Tive ideias.
Mudei de ideias.
E de tanto beber e vomitar aprendi que tudo que se pode tocar não tem valor nenhum.


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Jardim de lua cheia


Esse branco que vemos na lua é o alvor de um jardim.
Jardim de flores alvas,
Sensíveis como flocos de bolhas de sabão.

São flores de sonhos que nos deixaram.
Sonhos que deixamos.
Que vendemos por um troco, por um placebo.
Sonhos que partiram e se partiram antes de ser.

São pequenos anjos desprotegidos.
Orbitando sua minúscula claridade longe de nós.
Vaga-lumes que na mais profunda escuridão
Nos banham de visão de luz no fim de tudo.

domingo, 12 de agosto de 2018

Para quando chegarmos em casa

Ah, esse perfume de lar
que condensa o tempo e nos faz sorrir
mesmo quando a cinza embriaga o azul do céu
e o horizonte despeja em chuva seu cansaço.

Ah, como a vida é estranha.
Apaga luzes,
Acende sóis,
Manda pancadas de trovão,
Abre arco-íris em volta de jardins.

Viver é se equilibrar no tempo.
Aguentar bebida forte em bares escuros,
Saborear guaraná gelado na varanda do sossego.

Viver é saber passear de mãos dadas,
Não ter certeza nenhuma,
Aceitar o que não se pode mudar,
Plantar muito mais do que colher.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Metrópole

Imagem: Antonius Manso 

Quando olho os rostos das pessoas
no centro dessas cidades grandes
fico perdido,
atônito.

Como se tudo ao redor fosse ferro,
metal,
chumbo,
aço inoxidável impenetrável.

Apenas eu me sinto humano.

E vem uma vontade pulsante de chorar,
voltar para casa,
morrer,
não sei dizer.

A vida nos grandes centros não tem perdão.
A esmola e o supermagazine se entrelaçam.
Ninguém se vê.
Ninguém se sente.

E o céu esfumaçado pela borra de óleo diesel e gasolina
é o que sobra de socorro aos aflitos.





terça-feira, 7 de agosto de 2018

Nus


Não se pode mais tocar.
As epidermes endureceram e se armaram.
Nos tornamos bélicos.
Somos intolerantes e não acreditamos em flores.
A força que move é a violência do caos que nos inunda.

O vento traz respostas.
O sol manda luz.
As árvores,
Os pássaros,
As águas,
As crianças pequenas brincando de ciranda.
Nem a noite muda e mansa abranda a ferocidade.

Ficamos cegos de tanto ver.
Nos tornamos carteiros de prantos.
Perdemos a compaixão em algum porão de suicídios.
Nos encaramos e não nos vemos além de nós mesmos.
E não adianta a canção,
O violino melódico,
O verso suave,
O poema com sua taça azul cheia de horizontes.

O mundo encolheu as roupas da humanidade.
Estamos nus plantando campo minado.