Pássaro Unitário

Pássaro Unitário

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Encontrar

Amanhã falo com você.
Acordo antes do sol,
Deixo a barba feita,
O terno engomado,
E aguardo o primeiro ônibus.

Olharei pela janela embaçada,
Verei a urgência no correr das pessoas,
Ouvirei o freio,
A buzina,
A máquina do coração.

Sentirei a angústia do vendedor de chicletes,
O calo na mão do limpador de para-brisas,
O hálito do bêbado sem lar,
A loucura milimétrica dos entorpecidos na Praça João Maria,
A saudade de quem nunca viveu saudade.

Descerei no ponto final do tráfego.
Cumprimentarei a estranheza pálida dos que esperam.
Aguardarei a ordem do sinal vermelho,
A parada dos automóveis,
Contarei com meus sapatos as linhas da faixa de pedestre.

Depois da caminhada sentarei no banco da praça sem jardim.
Ouvirei um pardal urbano cheirando a óleo diesel,
O vento quebrando folhas secas,
O ronco do mendigo há alguns metros,
As réstias dos prédios lançando suas sombras de concreto.

Esperarei você com lábios molhados pela língua,
Admirando a paciência dos ponteiros do relógio da igreja,
Datilografando um dia perfeito no presente,
Fazendo pose para o sol que banha meu cabelo,
Guardando um verso de flores sem fim.

Amanhã vale a pena viver.
Amanhã falo com você.

Um Salto para O Japão

Pela vidraça quebrada escapa a nicotina.
Se o azul manda cartas o correio insiste em desviá-las.
Beleza é a criança contando estrelas sob o escuro do céu.
Se houver um jardim acomodaremos o silêncio lá.

A menina corre de pés descalços deixando a saia estampar o caminho.
Carregamos objetos roubados que nunca serão nossos nem de ninguém.
Serpenteamos argumentos, mas o sábio não diz amém.
Se temos tempo não nos sobrará mais tempo.

A vidraça quebrada deixa a nicotina fugir e o mofo respirar.
Fotografias, poemas e o frio que o fim da tarde planta nos nossos ossos.
As rugas nas pracinhas jogam damas bem devagar.
A cigarra na flor do abacateiro canta sem ninguém notar.

A menina mira seu olho verde no estrago da vidraça.
Seus dedinhos de sete velas delineiam a lâmina do vidro fosco.
O pai observa o inefável e por instantes consegue tocá-lo.
A noite estende seu sobretudo cobrindo o resto de cor do horizonte.

Os lábios miúdos começam a dedilhar a canção:
“...Uma noite não é nada
Se não dormir agora
Dormirá de madrugada...”.

Bom mesmo é correr com o sol
E quando tudo parecer declínio do crepúsculo
Viajar saltitando pelo planeta adentro
e ir sorrindo, com dentes fartos, iluminar o Japão.

A Constatação do Cavaleiro de Cristo

Desceu o escudo e a lança.
O crepúsculo acompanha a procissão de esquifes enfileirados.
A terra árida se alimenta do sangue da última batalha.
A armadura nunca é tão dura.
Todas as lutas vencidas de velas acesas no campo escuro.
A derrota nunca deixa de acariciar a vitória.

A mudança chega de mãos dadas com o que nada mudou.
Tem todas as revoluções dentro do seu diário.
O bicho dentro de cada caverna devora carne crua.
Deuses criados na pedra negra que nos sacia.
A ferida aberta por nossas próprias espadas.
Uma oração para a morte vestida do cetim que costuramos.

O cavaleiro admira o brasão com a tristeza da sua certeza.
A bandeira tremula no sopro do vento noturno sem estrelas.
A ordem cultivada no jardim sem flores da desordem.
O mundo dolorido gemendo dentro de nós.
Mãos postas no aço sombreado que o egoísmo cultiva em seu louvor.
Nunca se é tão forte diante do mais forte.

O Cavaleiro de Cristo recua.
Toca a cruz com o menor dedo da sua mão.
Ouve a voz mastigada de um bardo soletrando sua poesia pedinte.
À distância nem sempre é tão longe.
Os músculos do cavalo de guerra se contraem diante do nada.
Por vezes a constatação é maior do que qualquer oração.

O Cavaleiro de Cristo segue parado.
Percorre a cruz do seu brasão com o menor dedo da mão.
Lembra-se de casa contado os cascalhos da estrada.
A fileira de escudo, o metal pontiagudo das lanças,
o rugir dos tambores surdos, a ganância do que nada sobra,
a promessa que não se cumpre.

O Cavaleiro de Cristo não acredita mais nos homens,
Não confia mais nos anjos,
Não acena mais nenhum juramento as causas.

Ele ajoelha e não encontra os santos.
O Cavaleiro de Cristo alcançou a constatação
Que é maior do que qualquer oração.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Cartas da Distância

Distribuo borboletas no jardim da lua que me abandona.
Pertenço ao outro lado da moeda.
Não tenho estrela, mas guardo o risco luminoso num dos bolsos rasgados.
Sou meu fantasma
E assombro os vermes com meu hálito em putrefação.

Cedo as últimas penas das minhas asas de anjo caído.
A queda também é um voo largo.
Habito a sombra que o sol não quis beijar.
Acendo o cigarro nos lábios mais vermelhos da avenida escura.
Meus calos desconhecem o calçado em pose nas vitrines.

A interrogação é sempre mais bela que qualquer resposta.
Por isso vivo de perguntas que tornam meu peito um dilúvio.
A certeza desmorona antes do final do primeiro drink.
Corro atrás do verso que ninguém quis.
Onde não há aplauso encontrarei a verdade.

Ergo minha taça cheia de lagartas entrelaçadas em mil abraços.
Não trouxe flores, cartão postal ou poema inocente de amor.
Canto com os poetas mortos suas canções de viva a vida.
Temo sua razão que caminha soberana com a foice da morte eterna.
Nada é claro e tudo sempre tem seu lado escuro.

Abrigo em meu terno de brim cinza o incômodo deste mundo.
Cada homem alimenta seu medo mais profundo.
Cão rosnando com os dentes do vizinho.
Cadafalso armado e perfumado com o esmalte das suas unhas.
O inexorável é o mais nobre companheiro do homem sem medo.

Meu inefável perdão a luz da lua que me abandona sem saída.
À distância me enviará belos poemas de despedida.
Sou eu mesmo o caos e a solução do fogo que serena sobre mim.
Escolho a dor, o sofrimento, o sorriso e a alegria em tudo que me toca.
Sou meu próprio deus em tudo que dou adeus.

O Pulso e o Impulso

Profundamente amar.
Sem abrigar saudade no castanho da retina.
Sem afogar as folhas brancas do diário de menina.

Profundamente amar.
Na delicadeza leve de toda fragilidade.
No risco divino do meteoro da brevidade.

Profundamente amar.
Bordando começos depois de cada fim.
Admirando a eternidade no fio estreito do momento presente.

Profundamente amar.
Abandonando a teoria, a experiência e o conceito.
Indiferente ao padrão, a forma e a fenda do pensar.

Profundamente amar.
Na certeza que tudo passa ou passará.
Na beleza do apocalipse que não tem força sobre o que já foi.

Profundamente amar.
O que foi,
O que é
E o que será.

Depois de tudo...
Profundamente amar.
 

Já que de concreto
Nem o caminho reto.